Sunday, February 28, 2016

 

Sou desta terra de memórias silenciadas

POR Teodósio Bule

(Colaborador do Jornal Debate - artes e cultura)*

Muitos gostam de mim por ser desta terra. Alguns talvez não. Não importa. Sou desta terra. Aqui nasci, tendo como tecto este céu azul sem igual, num dia de Agosto do século XX, à hora do almoço, na casa da minha avó Rosalina. Cocuane M’Bétuè foi quem cortou o cordão umbilical. O prepúcio, esse, e observando o pouco que ainda sobrava dos ritos conexos, coube ao Sr João M. cortá-lo, anos mais tarde, e não sei até hoje por que tal tarefa não coubera ao aclamado e auto-aclamado Mestre Goanyane, por sinal meu amado e finado tio, do qual guardo em particular a recordação do seu falar comedido e anasalado.

Sou de África, onde acontecem coisas. Algumas nossas, outras nem tanto. É que, há coisas que acontecem na nossa terra mas não são nossas. E há coisas que acontecem fora da nossa terra mas que são nossas. Alguns fingem que não entendem que o passado não se perpetua. Contudo ele é indispensável hoje. E amanhã. Do passado aprende-se, não se prende.

O passado guarda sem ocultar o que é indispensável hoje. Fala-nos permanentemente. Faz-nos ouvir a voz dos antigos. Devíamos procurar ouvir a voz dos antigos, procurar os seus sinais. Continuamente. E eu oiço a voz dos antigos. Procuro ouví-los, procuro os seus sinais. Porque sou desta terra. A mesma terra da velha Chibindzi do Ungulani, que me convida a inalar dos atávicos tempos os odores – não serão antes os aromas!? – da terra primeva e os assuma sem os cortes umbilicais que os discursos do presente impõem... Sim, sou desta terra. Serei sempre desta terra.

Sou deste planeta, onde cruzo caminhos com o Dan, que me adverte para o facto de que os antigos compreendiam o pensamento humano de uma forma mais profunda do que nós o fazemos hoje. Afinal, a mente humana era a única tecnologia que os antigos tinham à sua disposição. Onde está a mente está o tesouro! A Nona, a prova cabal do afirmado! Não sei se existe alguém que possa imaginar o nosso mundo sem a nona sinfonia de Beethoven...

Nesta minha terra, o sonho dos antigos foi quebrado. As grilhetas que ontem prendiam os tornozelos dos nossos antepassados prendem hoje as nossas mentes. O corte umbilical entre a actual geração e a antiga tem sido um macabro sucesso, iniciado no tempo da velha senhora, e reforçado no período da revolução das balalaicas. Há que reconhecê-lo. É a desgraça!

Hoje praticamos actos hediondos que comprometem o desenvolvimento da Mulher e rapariga, actos que cerceam o desenvolvimento da família e da sociedade, e justificamo-los com a importância de observar e preservar supostas práticas ancestrais. São os casos dos abomináveis casamentos prematuros e ritos de purificação, só para citar dois. Para nosso infortúnio, tanto os promotores e praticantes de tais actos perversos, quanto as vozes de indignação, revelam-se ambos uns completos ignaros sobre a verdade dos antigos.

Naquele tempo, aqui, na minha terra, o matrimónio era sagrado. Era, antes de mais, e acima de tudo, uma união de duas famílias, por via da concepção e materialização de um novo lar, em torno de um jovem casal em idade adulta. Sublinho, jovens em idade adulta. A olhos desapaixonados e de boa fé, podemos constatar que o matrimónio era, na verdade, uma extensão, senão mesmo a génese de um imenso poder da mulher... Ah!, como eu gosto da minha terra! Serei sempre desta terra.

O poder da Mulher tem, na minha terra, assim como noutras, presumo, o condão de ser um poder solidário, um “poder com”, por contraposição ao “poder sobre” o outro. Ironicamente, nas regiões onde era norma a prática do lobolo, a família do noivo pagava avultadas somas em dinheiro à família da noiva, para que esta assumisse o poder – uma rainha, para perpetuar o nome da nossa família!

Poderia dar-se o caso de, por razões várias, ela ascender ao trono em tenra idade, muitas vezes por preferência dos próprios súbditos. Em tais situações, como era tratada a questão da sexualidade da menor? Do mesmo modo como se lidava com a sexualidade de qualquer menor: como a rapariga não mais vivia com os seus progenitores, era à sogra que cabia a responsabilidade da sua educação, neste caso, até atingir a maturidade. Naquele tempo, a distinção entre matrimónio e vida sexual da mulher era clara. As normas eram escrupulosamente observadas. Nesta terra que é minha.

Em poucas palavras, e para terminar, apresento de seguida uma história verídica assaz elucidativa do acima afirmado. Em 1910 nasceu T, uma belíssima rapariga de tez clara, enérgica, traços finos, e cabelos lisos, denunciando, quiçá, origens goesas ainda por confirmar. Em 1922, ela foi lobolada. Tinha, portanto, 12 anos de idade. Passou a ser a primeira esposa de M, que era, ele próprio, um nobre, por conta da sua posição profissional nas minas da África do Sul. Em 1930 surgiu a primeira gravidez e em 1937 a última, de um total de quatro. Portanto, a rapariga tinha 20 anos de idade quando surgiu a sua primeira gravidez.

Hoje, aos 106 anos de idade, ela que nunca passou necessidades em toda a sua longa vida, mas que continua a trabalhar, cuidando da sua pequena horta, só lamenta o facto de nenhum dos seus netos não ter ainda desposado alguma descendente dos seus irmãos e sobrinhos, como prova do reconhecimento da nobreza das suas origens mas, sobretudo, como forma de estender o seu poder para um membro feminino do seu próprio sangue. É assim que os antigos faziam, aqui, nesta terra de memórias silenciadas.

T tem netos, bisnetos e trinetos. Das suas netas e bisnetas, em particular, contam-se engenheiras, professoras, empresárias e profissionais liberais. Naturalmente que isto não teria sido possível se ela tivesse sido vítima dos abusos inerentes a matrimónios mal concebidos e contrários aos ensinamentos dos antigos. Na verdade, tudo depende da maneira como os adultos escolhem ser desta terra. O segredo está em saber ser desta terra.
*Este artigo foi inicialmente publicado na minha coluna Palavras do Tempo ao Lado, do Jornal Debate (Moçambique), edicão 66/20, de 19 a 26 de Fevereiro de 2016.


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