Monday, July 03, 2006

 

NEPAD é uma forma africana de integração mundial


Por Teodósio Bule

Passa já um ano que Live8 ligou o mundo através de concertos musicais simultâneos, realizados em cidades dos países mais ricos do planeta, mais a Rússia e a África do Sul, para antecipar a cimeira do G8 de 7 e 8 de Julho de 2005, em Gleneagles, Escócia.

Com o objectivo de sensibilizar os líderes dos países mais industrializados para o cancelamento imediato da dívida dos países africanos, duplicação da ajuda externa ao nosso continente, e prossecução de uma política de comércio justo, o evento foi organizado por figuras proeminentes da música ‘pop’, com apoio entusiástico do anfitrião da cimeira do G8, o Primeiro Ministro britânico, Tony Blair.

Tony Blair junta a sua voz à dos especialistas que acreditam que o crescimento económico nos países de baixo rendimento só será sustentável se houver ajuda externa, para atenuar a insuficiência de poupança interna no financiamento de investimentos produtivos. Esta convicção fez dele um excelente aliado de África na cimeira de Gleneagles, na qual reafirmou o seu apoio total à causa da erradicação da pobreza absoluta no nosso continente. O líder britânico é presidente da Comissão de alto nível para África, e coube-lhe igualmente a presidência rotativa da União Europeia, no segundo semestre de 2005.

Live8 e Gleneagles são os mais recentes acontecimentos mediáticos que vieram sacudir a consciência mundial, ao reiterarem que é possível erradicar a pobreza em África, e que não é de todo impossível varrer da face da terra a fome nos próximos vinte e cinco anos. Basta para isso que haja lideranças globais sérias e à altura das necessidades e dos acontecimentos.

Feliz é a actual realidade africana, em que os líderes políticos dos países mais industrializados, assim como os respectivos líderes empresariais nos seus mais variados ramos de negócio, encontram em África uma geração de chefes de Estado e de governo que percebem que só uma nova e radical intervenção poderá deter o escalar dos níveis de pobreza, subdesenvolvimento, e a contínua marginalização do continente no contexto dos negócios globais.

A África política fala agora a uma só voz, a voz da União Africana (UA). É no contexto da UA que surge o conceito de uma Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (NEPAD), para dar corpo a uma visão e enquadramento estratégico integral para a renovação do nosso continente. A NEPAD é sinónimo de recuperação da agenda africana, e tem como princípios, entre outros, a boa governação como requisito básico para a paz, segurança, e desenvolvimentos político e sócio-económico sustentáveis; e o estabelecimento de uma nova parceria internacional que reequilibre as relações entre África e o mundo desenvolvido.

A NEPAD é uma iniciativa continental abrangente e integral de acção, baseada na promoção de parcerias entre os sectores público e privado para a concretização de programas sócio-económicos da UA. Para tal existe um secretariado, responsável pela mobilização de recursos financeiros e materiais, recursos estes destinados aos governos nacionais para a implementação dos programas acima referenciados, de harmonia com a integração regional dos países.

A NEPAD é um processo, e como tal segue etapas. A actual fase caracteriza-se por um diálogo mais virado para os organismos governamentais e não governamentais, bem como para o sector empresarial com interesses no continente. A fase seguinte espera-se que seja a de um maior envolvimento dos particulares, com os quais serão estudadas e implementadas soluções sustentáveis para ultrapassar os obstáculos que ainda inibem o desenvolvimento económico e social do continente.

Numa primeira fase, o envolvimento directo dos particulares consistirá na dinamização e implementação dos casos de sucesso que se vão verificando em pequena escala um pouco por todo lado, e em todos os sectores de actividade económica. Esta acção, só por si, poderá significar a capacitação dos intervenientes para outras actividades futuras que ainda não são do seu domínio. Alguns sectores de actividade económica, como a agricultura, foram já identificados pela NEPAD como prioritários e estratégicos para o crescimento económico do continente.

Como a economia moçambicana é fundamentalmente agrária, visto que actualmente emprega mais de 80% da força de trabalho, importa prestar particular atenção aos programas da NEPAD, referentes a este sector de actividade. Para isso é extremamente importante termos bem presente a fotografia da agricultura nacional, para um melhor enquadramento da realidade que se aproxima, uma vez que no âmbito da UA os programas supranacionais devem ser adequadamente acomodados nos programas dos governos nacionais.

A fotografia confirmará, mais uma vez, aquilo que já sabemos. A maioria das explorações agrícolas são familiares e de dimensão extremamente reduzida, a produção é basicamente composta por algumas variedades de produtos alimentares para consumo próprio ou para o mercado interno, a capacidade comercial é incipiente ou inexistente, o uso de tecnologias modernas de produção é insignificante, e poucos são os produtores que tem alguma sensibilidade técnica para responder às variações cíclicas das condições climatéricas.

Esta é a fotografia actual da nossa agricultura. A interpretação da imagem que se visualiza é livre. Depende, portanto, do ângulo que se escolhe. Alguns dirão que o quadro é negro, e não se pode augurar nada de bom para a agricultura nacional num futuro próximo. Mas aqueles que pensam assim esquecem que o nosso país tem uma das maiores e melhores redes hídricas do mundo, esquecem que 97% da terra arável está ainda por cultivar, e talvez não se tenham ainda debruçado sobre o impacto da aplicação na agricultura de pelo menos 10% do Orçamento Geral do Estado, até 2007, recomendada pela União Africana.

Ora as políticas e recomendações da União Africana resultam duma extensa e aturada investigação, promovida e coordenada por especialistas africanos, tendo bem presente a actual realidade sócio-económica do continente. As propostas e recomendações da UA são baseadas naquilo que de facto ocorre no terreno, donde se colhem saberes, experiências e subsídios intelectuais existentes nas comunidades locais. Esta atitude de permanente interacção com as comunidades relevantes evita erros de implementação de políticas, permite a correcção do que está errado, melhora o que está correcto, e minimiza a resistência das comunidades à introdução de novos métodos de produção e gestão de recursos.

É esta a lição que Teixeira Cumbi, técnico médio agrário da Visão Mundial em Moçambique parece ter muito bem estudada. Actualmente a implementar um projecto junto da comunidade de Ndengwini - Manjacaze, o técnico tem sido capaz de apresentar resultados surpreendentes e encorajadores, num ambiente social hostil e de difícil comunicação. A sua abordagem consiste em incutir nos participantes o sentido de pertença, ao fazer com que os membros da comunidade percebam que sem eles o seu trabalho não teria qualquer sentido, e o sucesso do projecto depende da colaboração de todos.

Aqueles que trabalham com Teixeira Cumbi sabem que são pessoas importantes, vêm o seu esforço reconhecido, e não têm dúvidas sobre a preponderância do seu papel no sucesso do projecto. Tem sido assim desde a primeira experiência, ainda em 2004, com a produção de feijão cafreal e amendoim. Uma vez reservada a parte necessária para a sementeira colectiva seguinte, a colheita é equitativamente dividida e distribuída pelos membros do grupo de trabalho.

O projecto dirigido por Teixeira Cumbi consiste na capacitação das populações mais pobres e vulneráveis para a melhoria dos seus métodos de trabalho e de produção agrícola. Dedicando-se a culturas já suas conhecidas, organizados em grupos de 7 a 8 pessoas, e cultivando uma área emprestada ao projecto por um dos membros do grupo, os participantes põem em prática novos métodos de produção e gestão, o que lhes permite aumentar substancialmente a produtividade, sem recurso a tecnologias sofisticadas de produção, nem fertilizantes, e no mesmo solo que há muito era considerado infértil.

A NEPAD é feita de indivíduos como Teixeira Cumbi e seus grupos de trabalho, que percebem que a mudança de atitude perante as coisas é muito mais importante do que a disponibilidade de meios materiais e financeiros. A NEPAD é feita daqueles que partem das suas próprias culturas e experiências para responder aos desafios da globalização, num claro reconhecimento de que as nossas próprias culturas africanas contêm elementos geradores de raciocínio inovador para uma outra maneira de encarar a modernização, integração e revitalização.

Enfim, dando corpo às positivas transformações económicas e sociais em África, a NEPAD é a razão do actual movimento global por África, reflectido em acções como Live8 ou Comissão para África. É por causa da NEPAD que são hoje mais eficazes as campanhas de apoio ao nosso continente. Porque a NEPAD é uma atitude, é uma forma africana de estar no mundo, é o resgate da agenda africana, é a restituição dos benefícios do trabalho àqueles que de facto trabalham, independentemente do género e da condição social. NEPAD é uma forma africana de integração mundial.


Artigo inicialmente publicado na minha coluna mensal RENASCENÇA, do caderno de Economia&Negócios, do jornal "notícias" (Moçambique), edição de 23 de Setembro de 2005.

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