Friday, March 11, 2016
A septuagenária serpente coxa
POR Teodósio Bule
(Colaborador do Jornal Debate - artes e cultura)*
Diz, repetidas vezes, o nosso segundo
Prémio Camões, e o povo ecoa, que há quem tenha medo que o medo acabe. Sucede
que aqueles que têm medo que o medo acabe viveram sempre do medo dos outros, e
não aprenderam a viver de outro modo, acreditando ingenuamente na eficácia dos
seus mecanismos de reprodução do medo. Os outros, esses, sobre os quais se infunde
e recai o medo vivem, de facto, amedrontados, mas esse sentimento de
inquietação, resultante da ideia de um perigo real ou aparente não é,
afinal, sustentável. Aqueles que tinham
medo começam a dar sinais de que estão a libertar-se ou, o que é mais provável,
começam a ser substituidos por novas gerações. A biologia é inelutável!
O medo provém, naturalmente, da
incerteza. Que o diga o Secretário Filimone, da rua 513.2, cujo drama foi
magnificamente retratado por João Paulo Borges Coelho, na crónica do mesmo nome.
Filimone é, certamente, um membro daqueles que hoje têm medo que o medo acabe, gente
de olhos colados ao umbigo, propensos a silenciar a diferença e a reduzir o
país à dimensão dos seus quintais, para quem dizer não é crime, mesmo que esse
não seja ao recorrente fratricídio...
Aliás, não faltou a Filimone a
experiência de que o medo pode acabar, ou que pode transformar-se em raiva, a
raiva em desespero e o desespero em acção, quando tentou infundir o medo em vítima
errada, o Doutor Pestana, conforme oportunamente testemunhámos.
Mas isso foi naquele tempo. Hoje
Filimone terá, certamente, medo de perder um futuro igual ao presente que
possui. E esse seu medo arrasta-nos novamente e inexoravelmente para a já
conhecida guerra cobarde, ignóbil e, como sempre, vaidosa, que se ostenta mesmo
nos lugares onde se diz ser a exclusiva moradia da paz, a mente dos inocentes. Haverá
interpretação melhor da imagem do jovem soldado fazendo as suas orações no
intervalo da sua imposta macabra missão, senão a vaidade da guerra?
E o povo, esse, embora resmungando, ou
marchando exporádica e timidamente pela paz, continua a aceitar; porque é da
sua natureza aceitar. Ou porque, tal como em Kulumani, há na nossa terra uma
peçonhenta serpente que circula pelo silêncio dos tectos e pela lonjura dos
caminhos, que procura as pessoas felizes para as morder e as envenenar, sem que
elas se apercebam nunca. Ainda é, na verdade, colossal a distância que aparta
as massas do saber universal!
Esta talvez seja a razão
porque todos temos medo, nesta minha terra. Medo da vida, medo dos amores, medo
até dos amigos. Uns chamam a esse monstro de “diabo”. Outros chamam-no de
“shetani” ou “sathani”, ou ainda “plop” ou “txiluma”. A maior parte, porém,
chamam-no de “serpente coxa”. Essa serpente somos nós mesmos, dizem em Kulumani.
E não se enganam.
*artigo inicialmente publicado na minha coluna Palavras do Tempo ao Lado, do Jornal Debate - artes e cultura, edição 69/23, de 11 a 18 de Março de 2016.