Sunday, April 10, 2016
O carácter da rapariga e o tamanho da saia
POR Teodósio Bule
(Colaborador do Jornal Debate - artes e cultura)*
- Sou criança, eu!? “Ni nga ku tlanga, mina!”[1]
Foi nestes termos verbalmente
violentos que reagiu uma rapariga dos seus 14 ou 15 anos de idade, em 1993,
salvo erro, ao suspiro involuntário de um amigo meu que, confrontado com a
exiguidade da saia que ela vestia, a caminho da escola, simplesmente exclamara:
“estas crianças, pá!”...
Importa referir que meu amigo era, à
data, estudante universitário em Portugal, e que se encontrava em gozo de
férias em Maputo, pelo que provavelmente ainda não estava habituado à
indumentária feminina da cidade das acácias mijadas...
Do acima exposto, embora possamos
relevar a intenção de sexualizar o assunto por parte do meu amigo, o mesmo não
podemos dizer em relação à rapariga, pois as suas atitudes indicaram claramente
que a sua intenção era mesmo sexualizar-se, e fazia questão de se certificar do
sucesso dos seus intentos, uma vez que ao acercar-se de indivíduos masculinos,
apurava os seus sentidos para poder ouvir os comentários destes, para reagir à
altura. Receio ter que concordar que há aqui uma relação directa entre o
tamanho da saia e o carácter da rapariga. Mas não sejamos tão simplistas!
De lá para cá, passam já cerca de 23
anos. A nossa rapariga tem agora cerca de 38 anos de idade, ou seja, tem idade
suficiente para ter filhas da geração daquelas que hoje são obrigadas a vestir
maxi-saias (que extremismo desnecessário!), para “salvaguardar o seu carácter”
e “evitar que homens de má índole as importunem”. Sim, porque estes “têm esse
direito, sempre que a rapariga se vista de uma forma inadequada”.
Tudo começou em finais da década de
1980, quando as primeiras transparências no vestuário feminino começaram a
ganhar terreno nas cidades moçambicanas. A década de 1990 não só continuou com
a popularização das transparências, como as saias se afastariam cada vez mais
do joelho, até chegarmos à década de 2000, em que, não satisfeitas com a
exposição da perna em público, popularizaram as calças e saias de cintura
baixa, para expor as nádegas e o famoso “cofrinho”, ou seja, o acesso visual ao
ânus.
Mas, de repente, a moda da cintura
baixa perdeu terreno e, como muitas saias e calças são importadas, as raparigas
começaram a compensar com outras peças de roupa menos íntimas, recuperando, de
certa forma, a suposta dignidade feminina reclamada por alguns sectores da
sociedade. O mais interessante é que foram elas próprias, as raparigas, donas e
senhoras do seu corpo, que decidiram mudar. Ninguém as obrigou. Do mesmo modo
que à medida que vão ganhando maturidade, por iniciativa própria aproximam as
saias ao joelho e reduzem a transparência das mesmas. Eu tenho estado a
acompanhar este processo há quase 3 décadas!
Ora estamos a falar de cerca de três
décadas de afirmação da rapariga na nossa sociedade, que custa a acreditar que
só hoje estejam a ser questionadas. A imposição de maxi-saias em 2016 é um acto
de um anacronismo tal que só seria compreensível se recuássemos para a época da
invenção do tear!...
Como se não bastasse, a violação dos
direitos da rapariga e Mulher por via do vestuário inclui o condicionamento do seu
acesso às instalações públicas. Ao contrário dos homens, que ainda podem mostrar
o abominável “cofrinho” masculino, e entrar de chapéu e óculos escuros em
qualquer parte deste belo Moçambique.
A situação é tão grave que por pouco
barravam o acesso ao hospital provincial da Matola a uma rapariga doente minha
conhecida, porque o segurança exigia que ela tivesse uma capulana amarrada ao
corpo.
Enfim, a leitura que faço é simples:
ter no sistema de educação “professores” pedófilos e tarados sexuais não é
problema, “até é coisa de homem africano, que não resiste aos apelos do corpo
lascivo das negras”... O problema é a suposta nudez das raparigas. Elas que cubram
o corpo! Que se lixe o monumento à Renascença Africana, no Senegal!
E eu, infelizmente, já vi este
filme... O artista morre no fim.
*artigo inicialmente publicado no Jornal Debate - artes e cultura, edição 73/27, 8 a 15 de Abril de 2016.
[1] Literalmente, quer dizer “posso ‘brincar-te’”,
ou seja, “sou tão adulta e competente que tu não estarias à altura dos meus
dotes sexuais”.