Thursday, December 29, 2016
As tréguas de Dhlakama e o sinuoso rio chamado paz
POR: Teodósio Bule
Uma
leitura do testemunho de John Hewlett, constante do seu livro O Cheiro da Chuva – Memórias de Moçambique, 2014,
permite-me apresentar os extractos que se seguem, nos quais redescobrirmos que,
afinal, os caminhos da paz são sempre sinuosos que nem um rio e, portanto, o
que é preciso não é endireitar o caminho mas antes remover os obstáculos que
provoquem o seu assoreamento.
As
memórias de Hewlett só reforçam a ideia que formei do líder da RENAMO em 1994,
uma vez que tive também a oportunidade de merecer alguns minutos de sua atenção,
num encontro de minha iniciativa na cidade portuguesa do Porto, onde os
estudantes moçambicanos puderam trocar ideias com ele, num ambiente cordial em
que, pelo menos do lado dos estudantes, se tentava dissipar as fantasias
criadas em torno duma figura que se tornara central desde a proclamação da
independência nacional. Voltaremos a este ponto mais adiante.
Por
decisão da FRELIMO, foi levado a cabo um debate a nível nacional sobre uma nova
constituição da república, que foi posteriormente adoptada pelo Parlamento em
Novembro de 1990. Tratou-se de uma constituição que abandonava o papel dirigente da FRELIMO, consagrava a
democracia multi-partidária e a economia do mercado, abolia a censura e
introduzia os princípios constitucionais da liberdade de expressão, de imprensa
e de reunião1.
Entretanto,
em Julho do mesmo ano, tinham começado em Roma as conversações de paz entre o
governo e a RENAMO, que culminaram com a assinatura do acordo geral de paz
(AGP), em 4 de Outubro de 1992. Na altura estimava-se em doze mil os
guerrilheiros da RENAMO, enquanto contra eles estavam cinquenta mil das forças
da FRELIMO, assim como mais de dez mil tropas zimbabweanas2. Números
tão relevantes que não deviam ser ignorados!
Como
é natural, as conversações para a paz não foram isentas de dificuldades, afinal
estavam à volta da mesa de diálogo forças desavindas há quase duas décadas, e
em que uma das partes desconhecia por completo o potencial da outra. Para
desbloquear o impasse nas conversações, o Presidente Keneth Kaunda, da Zâmbia,
encorajou o Presidente Joaquim Chissano a falar directamente com Afonso
Dhlakama3.
Em
Junho de 1992, reataram-se as conversações em Roma. A RENAMO concordou em
diferir as suas preocupações sobre a constituição até que fossem resolvidas as
questões militares. Naquela décima primeira ronda de conversações ficou
acordado que as emendas relativas à constituição seriam discutidas antes de
declarar o cessar-fogo4.
Foi
por causa desta possibilidade de proceder às emendas que eu achei, na altura, que
o debate não fazia sentido, uma vez que uma das partes interessadas não estava
envolvida no processo. Até porque as negociações para a paz haviam já iniciado,
pelo que talvez valesse a pena esperar pelo sucesso das mesmas para depois
lançar o debate sobre a constituição. O tempo veio a provar que os meus receios
não eram assim tão descabidos.
No
dia 5 de Agosto de 1992, as equipas rivais de negociação encontraram-se em
confereência. Ao fim do dia não havia nenhum progresso concreto. Foi então que
Tiny Rowland, patrão da Lonrho, envolvido desde a primeira hora na facilitação
da resolução do conflito armado no nosso país, sugeriu um encontro imediato
entre Dhlakama e Chissano. Mais ninguém estava envolvido. Os dois líderes foram
deixados sozinhos a resolver os seus diferendos. Conversaram toda a noite em
segredo. Rowland manteve-se fora do quarto do hotel como um guarda de vigia,
até que os dois presidentes emergiram. Chissano aceitara aos pedidos de
Dhlakama5.
Chegou-se,
portanto, a um esboço final do acordo centrado em cinco questões cruciais: a
garantia de liberdade política; a garantia simultânea de segurança pessoal para
todos os cidadãos e partidos políticos; a aceitação do papel da Organização das
Nações Unidas (ONU) na monitoria do cessar-fogo e do processo eleitoral; e,
finalmente, a garantia de que o governo nada faria para pôr em vigor leis que
fossem contrárias ao acordo já alcançado6.
Na
manhã do dia 7 de Agosto, a declaração conjunta, que não incluía um
cessar-fogo, foi assinada pelos presidentes de Moçambique e do Zimbabwe e por
Afonso Dhlakama da RENAMO. Tratou-se de um acordo que comprometia no entanto
ambos os lados a chegarem a um cessar-fogo até 1 de Outubro, data fixada para a
assinatura do AGP, a ter lugar também em Roma7.
O
governo queria tréguas imediatas mas Dhlakama afastou a ideia. Contudo, o líder
da RENAMO deixou cair o seu pedido inicial de anular trinta e quatro cláusulas
da constituição8.
Em
Setembro de 1992, as negociações tinham parado outra vez. A RENAMO não
cooperava. Não concordava com a dimensão nem composição das novas forças
armadas e não queria a continuação dos serviços de informação e segurança, os
quais queria vê-los abolidos9. Aparentemente, nas negociações
iniciadas em 2016, já não se fala em abolir os serviços secretos, mas sim em
integrar alguns elementos da RENAMO nos mesmos. Há, evidentemente, alguma
convergência.
Tornava-se,
portanto, urgente um novo encontro privado entre Chissano e Dhlakama. Ao fim da
tarde do dia 18 de Setembro, os dois líderes tinham chegado a Gaborone, capital
do Botswana, para o encontro. Ao cair da noite, Chissano e Dhlakama sentaram-se
juntos numa suite privada do Gaborone
Sun. Cerca das três horas da madrugada eles emergiram, cansados mas satisfeitos
porque mais uma vez tinham chegado a acordo nos princípios do cessar-fogo a
caminho das eleições democráticas. Chissano queria também o apoio da ONU na
desmobilização dos combatentes e na criação de umas forças armadas conjuntas, e
na condução de eleições10.
Uma
vez ultrapassado o impasse, surgiu uma exigência suplementar de Dhlakama:
queria garantias sobre a sua segurança11.
À
medida que se aproximava o 1 de Outubro, a atmosfera era de pesada expectativa.
Entretanto, a RENAMO insistia em certas alterações fundamentais para o processo
eleitoral. Estava a ser orientada por um alemão professor de lei internacional
na Universidade de Pretória. 1 de Outubro veio e foi sem que a equipa da RENAMO
desse sinal de vida12.
Um
Chissano furioso declarou que foi
quebrada uma promessa e isto há-de ser lido nos livros de história. Não é uma
coisa sem importância violar um compromisso escrito e assinado diante de
testemunhas internacionais13.
Tenha paciência, disse Dhlakama a Hewlett, este é o momento para conseguir que as coisas fiquem como deve ser.
E continuou: não lutámos estes anos todos
para agora não estarmos satisfeitos com o resultado, mas vai fazer-se14
[o acordo].
Para
Dhlakama, era importante que a RENAMO mantivesse a responsabilidade pelas áreas
territoriais que controlava. A RENAMO sentia dúvidas sobre se seria capaz de
manter a sua influência uma vez assinado o cessar-fogo. Ainda queria garantias15.
No
fim da tarde de 3 de Outubro de 1992, setenta e duas horas depois do fecho do
prazo para a assinatura do AGP, na suite
de Chissano estava toda a delegação de chefes de estado africanos e outros,
sentados e cabisbaixos, mal humorados. Chissano parecia pela primeira vez mais
do que deseperado. Ninguém fazia ideia do que tinha bloqueado a RENAMO16.
A
RENAMO resistiu até ao último minuto, pedindo a administração das áreas de
baixo do seu controlo. A mudança chave do texto final relacionava-se com as
áreas ocupadas pela RENAMO17.
Na
manhã do dia 4 de Outubro de 1992 o AGP foi finalmente assinado. Chissano e
Dhlakam abraçaram-se como dois irmãos há muito separados. O país ficou calmo, o
cessar-fogo vigorou na maior parte do país. Dhlakama tinha cumprido a sua
palavra18. Estas eram, na verdade, as primeiras tréguas que Dhlakama
honrava, e duraram vinte anos.
Na
primavera de 1994, um feliz acaso me colocou diante do delegado da RENAMO em
Portugal, que fora convidado para um evento da AIESEC da Faculdade de Economia
do Porto, minha faculdade. Aproveitei a oportunidade e perguntei-lhe se o líder
da RENAMO iria ou não encontrar-se com os estudantes moçambicanos em Portugal,
na visita prevista para aquele país, na sua qualidade de signatário do AGP e
candidato à presidente da República de Moçambique.
O
simpático delegado respondeu que não tinha pensado nessa possibilidade mas que
iria colocar o meu pedido na sua agenda. Foi assim que, integrado no seu
programa de visita aos empresários do norte de Portugal, Dhlakama recebeu, num
encontro informal, numa unidade hoteleira da cidade do Porto, um grupo de
estudantes moçambicanos ávidos de o conhecer e conversar com ele.
Eu
estava interessado em convencê-lo de que um processo eleitoral caro, seguido de
um governo de unidade nacional era um desperdício de recursos. Ou fazem eleições e
governa quem ganha, respeitando deste modo a vontade dos eleitores ou não se
vai a eleições e formam o tal governo de unidade nacional, poupando dinheiro
que tanta falta faz ao país.
Dhlakama
não concordou comigo, mas acho que o meu ponto de vista marcou-o, uma vez que,
finda a sessão de perguntas e respostas, ele veio dar-me um afectuoso e forte abraço.
Foi mesmo muito bom. Sobretudo tendo em conta que eu tinha jurado nunca
apertar-lhe a mão, por conta da bofetada e das longas caminhadas que seus
homens sujeitaram à minha saudosa mãe quando pela primeira vez invadiram a
minha aldeia-natal.
Depois
vieram as segundas tréguas, assinadas a 5 de Setembro de 2014, com o Presidente
Armando Guebuza. Tal como as primeiras, em 1992, estas tinham um carácter
definitivo. Mas foram quabradas logo após a divulgação dos resultados
eleitorais de Outubro do mesmo ano. A RENAMO exige a governação das áreas onde
reclama vitória. Afinal, desde as primeiras negociações em 1990, esta questão
ocupa o lugar central!
As
terceiras tréguas têm um prazo determinado – 7 dias, de 28 de Dezembro de 2016
a 4 de Janeiro de 2017. É a primeira vez que Dhlakama concede tréguas durante
um processo de negociação. Isto pode indiciar que, se as negociações forem
levadas a bom porto, assumindo e aceitando que o caminho da paz é, por natureza,
um processo contínuo e sinuoso, as quartas tréguas serão as últimas e
definitivas, sobrando para cada um de nós a tarefa de gerir com sabedoria o
processo de paz e de construção da nação moçambicana.
Como
nós ainda somos uma sociedade desarticulada, mas que felizmente nos vamos (re)descobrindo
interlocutores nesta nossa busca de novas formas de harmonia com o espaço e o
tempo herdados do colonialismo19, é importante manter o foco na
ideia de que o processo de paz não é finito e não se distingue do processo de
construção da nação moçambicana. Como afirma Renan (1882), citado em Bento
(2004), a essência de uma nação é que
todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham
esquecido muitas coisas20.
Referências
bibliográficas:
Hewlett, John. O Cheiro da Chuva – Memórias de
Moçambique. Kapicua, 2014
Cabaço, José Luís. Moçambique: Identidades, Colonialismo
e Libertação. Marimbique, 2010
BENTO, Vítor. Os Estados Nacionais e a Economia
Global, Almedina, 2004
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1-18Hewlett, 2014
19Cabaço, 2010
20Bento, 2004